Ele é um milagre.
Assim disseram os bombeiros, quando o tiraram com o coração ainda pulsando das ferragens de um recém ex-automóvel.
Ele é imortal.
Assim disseram os médicos, quando reconstruiram cirurgicamente várias partes, incluindo vitais, de seu corpo.
Quando aquele homem acordou, após um coma de três anos, todos os funcionários do hospital foram visitá-lo. Durante seu longo sono, foi notícia de jornal, capa de revista médica, assunto de programas de bizarrices e a lenda mais famosa daquele ambulatório.
Agora, três anos depois de seu acidente, quando abriu os olhos, novamente virou o assunto mais comentado, ao menos daquele hospital, por duas semanas, mas o mundo já o havia esquecido e a recíproca era verdadeira.
Ele esquecera o mundo.
Olhou-se no espelho e não reconheceu sua fisionomia.
Passou a mão na barba por fazer e não se recordava daquela sensação áspera.
Por fim, olhou no fundo daqueles olhos do outro lado do vidro, contudo, rapidamente desviou seu olhar. Algo naqueles olhos desconhecidos o incomodava profundamente.
Não tinha carteira, documentos, endereço, telefone, não tinha nome nem idade e nenhum parente ou amigo foi visitá-lo nestes anos.
Era um ninguém.
Procuraram em bancos de dados de pessoas desaparecidas, em bancos de dados de pessoas não desaparecidas e até em bancos de dados de pessoas falecidas.
Nada.
As teorias que os curiosos propunham era que ele era um estrangeiro foragido, ou que ele vinha do sertão sem lenço sem documento, ou até mesmo que ele se materializou do nada.
Nome?
Não sei.
País de origem?
Também não sei.
Idade?
...
Qual é a última coisa de que se lembra?
Cara, também não sei. Não me lembro de nada. Não sei nem ao menos porque estou neste hospital. O que aconteceu?
De todas as pessoas incomodadas acerca do mistério e da desconfiança daquele homem, de todas as pessoas obstinadas a descobrirem quem ele realmente era, ele, sem dúvida, era o mais.
Anos se passaram desde então.
O homem já tinha resolvido toda a burocracia para ser aceito pela sociedade, escolhera para si um nome qualquer, morava em um pequeno apartamento alugado e ganhava a vida fazendo traduções.
Contudo, a posse de tudo isto não diminuia o fato de não possuir um passado.
Além disso, vivia mergulhado em um tédio rotineiro e, por mais inédito que algo acontecesse em sua nova vida, nada lhe parecia surpreender. Possuía um incrível conhecimento de línguas e culturas, mas não fazia a mínima idéia do porquê. Tudo lhe parecia uma repetição de ciclos.
Cada dia mais incomodado e infeliz, buscou sua origem utilizando métodos convencionais burocráticos e não burocráticos e métodos não convencionais, de regressão e alucinógenos a quiromancia e mapas astrais.
Nada.
No desespero, começou a frequentar as mais diversas religiões até que, numa certa noite, sonhou com um estranho palimpsesto arquitetônico, uma surreal sobreposição de uma igreja cristã com um templo hindu, um mosteiro budista, uma mesquita islâmica e outras construções religiosas. Naquele lugar de seu inconsciente, em que diversos corpos ocupavam o mesmo lugar no espaço, todos os ícones, todos os anjos, santos, deuses, semideuses e orixás, eram espelhos.
Ele via sua imagem em todos os lugares e sentiu a mesma sensação que teve ao despertar de seu coma.
Olhou-se no espelho e não reconheceu sua fisionomia.
Passou a mão na barba por fazer e não se recordava daquela sensação áspera.
Por fim, olhou no fundo daqueles olhos do outro lado do vidro, mas, desta vez, não desviou seu olhar.
Sentiu-se tragado para dentro dos olhos de sua imagem e ali, dentro daquele outro que era ele próprio, compreendeu a si mesmo.
Ele era imortal. Ele era um milagre.
Lembrou-se de sua vida, que era a história da humanidade. De todos os verbos que um homem é capaz, o único que não experimentou foi morrer.
Incapaz de criar um sentido para o mundo, incapaz de criar outros mundos e incapaz de fugir e de superar sua condição humana, de tempos em tempos criava um sentido para sua vida ao apagar, mesmo que temporariamente, sua memória, presenteando sua vida com a morte.
Como uma fênix, vivia diferentes vidas que se auto-extinguiam, mas sem nunca deixar de nascer com a mesma matéria com a qual morria.