quarta-feira, 15 de abril de 2009

Como o cérebro atrapalha a escuta


- E é claro que não preciso dizer que...

Como assim "é claro que"?  
Se fosse assim evidente, você não diria que não precisa dizer o que acabou de dizer que não precisa dizer, o que quer dizer que, de alguma forma, o que você supostamente acabou de dizer que não precisava ser dito precisava sim ser dito de alguma forma, o que quer dizer que essa maldita expressão "não preciso dizer que" é imbecil, ainda mais se antecedida de um "é claro que", afinal, se você diz que não precisa dizer que algo, por que você diz logo em seguida o que acabou de dizer que n

- Não concorda comigo? 
- Ahn?


segunda-feira, 13 de abril de 2009

Notas musicais


"A música é a única arte que te pega pelas costas" (Millôr Fernandes)

Pois é, ela não pede nossa permissão. 
Não há como virar as costas ou fechar os olhos para dela fugir, até porque nossos ouvidos não têm pálpebras.
Ela penetra, invade nossos corpos e, em pouco tempo, estamos sob a posse deste espírito mais vivo que nós próprios que, antes de nos darmos conta, faz nossos pés marcarem o pulso ou mesmo valsearem um dois três um dois três...
E é justamente desta forma que ela nos faz perceber que, até ela nos atingir, estávamos ocos e vazios, e vai sutilmente nos preenchendo de vida, até o ponto que nos transborda e nos tornamos marionetes do som.
Dela nos emocionamos, nos alimentamos, nos embriagamos e nela achamos um refúgio.
Não importa quantas vezes se repita, a música se renova a cada momento, nos surpreendendo e nos tocando a cada instante, de maneira ainda mais intensa do que da primeira vez. 
Mal nossa música predileta termina e já estamos sedentos por ouvi-la novamente, pois cada escuta é um ato único, que depende de nosso estado de espírito, de nosso foco, de nossos desejos e do ambiente em que estamos.
Não importa quantas análises sobre ritmo, escala, andamento ou estilo alguém tenha feito; a música está além das palavras e do pensamento racional.
Ela é abstrata.
Uma nota só nada representa, pois não é simbólica como uma palavra ou uma imagem.
Contudo, a articulação de algumas delas começa a criar um sentido que, mesmo quando acompanhadas de uma letra, tem um significado muito próprio.
Ela faz rir ou chorar, evoca memórias e sentimentos, desenha paisagens, causa sensações e emoções.
É uma linguagem.
A partir dela, podemos nos expressar livremente qualquer sentimento ou pensamento, podemos ser quem somos sem máscaras e podemos até conversar com alguém de outro país por meio dela.
Talvez, a linguagem universal tanto buscada e até mistificada na narrativa da Torre de Babel seja a música, que todas as culturas tocam e a todas ela toca.
Ela é poderosa.
Seja ela utilizada como meio de expressão, como arte, como refúgio, como válvula de escape, como instrumento mnemônico, como linguagem ou como terapia, o poder da música é inegável.
Atemporal, ela sobrevive enquanto houver quem a ouça, independentemente da sua época de origem.
Imaterial, ela possui um perfume característico que, carregado de subjetividade, consegue tomar a forma do ouvinte. 
Invisível, ela preenche o ambiente e os que neles se encontram, criando uma atmosfera de sensações que não se dissipa simplesmente com o fim do som e o advento do silêncio.
Silêncio.
É só parar e prestar atenção.
Ela também reside no silêncio.









segunda-feira, 6 de abril de 2009

Esfinge


"Decifra-me ou te devoro."

A frase derradeira não era acompanhada, ao contrário do que conta o mito grego, de uma pueril charada infantil.
O enigma da Esfinge é, na verdade, indecifrável.
Não somente para os humanos, mas para o universo inteiro, para além do cosmos e do caos.

Tão indecifrável é o mistério que até mesmo a própria Esfinge, incapaz de decifrar-se, consome-se vorazmente e, alimentando-se de si mesma, sente-se cada vez mais faminta enquanto, ambiguamente, sente-se cada vez mais saciada e, misteriosamente, cresce a cada pedaço de si devorado.

Perguntas recorrentes sobre autofagia da Esfinge, como a sua origem, as suas proporções e os seus incontáveis e impossíveis paradoxos, são questões que a própria Esfinge também não sabe responder e a faz continuar, com ainda mais vontade e desespero, devorar-se.

Mal qual é, afinal, o grande enigma indecifrável da Esfinge?

É a própria Esfinge.





quinta-feira, 2 de abril de 2009

O Nascimento do Sol

*Texto de Chris Marker, 2002, em Nouvelles du Doppelwelt
Tradução de Emi Koide

Cada manhã, antes que o dia se levantasse, toda tribo ia se reunir junto ao rio, de onde o horizonte se mostrava mais claramente sobre a floresta.

Ah Ngang, o ancião, chegava por último. Ele se concentrava longamente, pronunciava algumas fórmulas mágicas pouco audíveis, enquanto rosto e mãos se colocavam num longo e penoso diálogo com o horizonte. Ao final do debate, o horizonte cedia e o sol, por vezes abóbora amarela, por vezes grande fruto vermelho, subia por detrás das árvores. Era o nascimento do novo sol, que tinha somente um dia para viver antes de recair, não se via muito bem como, do outro lado da floresta. Aplausos saudavam sempre a performance de Ah Ngang, e a tribo velava ternamente sobre ele.

Como ele se tornava velho, ele empreendeu a iniciação de um jovem homem, Sayub, para que na ocasião de sua morte a tribo não ficasse sem sol. Ele lhe ensinou as fórmulas e os gestos, com interdição de se servir delas enquanto ele ainda estivesse vivo.

Mas, quando ele estava mesmo à beira da morte, ele pediu aos outros que o deixasse só com Sayub, a fim de revelar a ele o último segredo. ' Não diga jamais a ninguém, salvo a aquele que te sucederá quando sua hora chegar, mas o sol se levanta sozinho. Não me julgue mal, não é para ganhar uma vida protegida no seio da tribo que eu perpetuei uma mentira que nossos ancestrais transmitiram desde os primeiros tempos. Mas a tribo ama que seja assim, eles são menos tristes assim. A sua vez agora.' E ele morreu.

Sayub não disse nada para não afligir o velho homem, mas ele sabia da história. Ele era curioso por natureza, e o acaso de um encontro com um branco lhe fez aprender um certo número de coisas sobre o mundo para além das florestas. Não à ponto de desmascarar a mentira de Ah Ngang, de quem ele tinha um pouco de medo, mas o suficiente para se fazer, há tempos, uma promessa.

Esta promessa, ele a cumpriu a partir da manhã seguinte.'Habitantes da tribo, disse ele, nós amávamos e respeitávamos Ah Ngang, mas ele era o passado, com ele morreu uma certa idéia poética do mundo, saudamo-la e sigamos corajosamente adiante: nossa tribo não pode ficar eternamente de fora de um progresso que tem tanto a nos oferecer. Aprendam enfim a verdade: o sol se levanta sozinho.'

Todo mundo o olhou com temor, e depois eles contemplaram o horizonte. Sayub não pronunciou nenhuma fórmula, nem se entregou a nenhuma mímica. E o sol não se levantou. Nem neste dia. Nem no dia seguinte. Nem nunca mais"