quinta-feira, 25 de outubro de 2007

Inocência

é ver uma poça d'água
e enxergar um portal para o céu
é inflar-se com o cheiro da chuva
para atirar-se no líquido celeste
é nadar entre as nuvens e engasgar estrelas
e sair com as roupas pintadas de lama



terça-feira, 16 de outubro de 2007

Cinderela

A luz refletiu no rosto do homem e chegou aos olhos dela.
Ao receber aquele estímulo visual, seu cérebro interpretou-o como sendo compatível com os requisitos de beleza guardados em sua memória.
Ele se aproximou dela e começou a conversar.
Agora, além do estímulo visual, havia também o estímulo auditivo, que seu cérebro interpretava como sendo uma voz
masculina muito bela. As mudanças de frequência de sua voz produzia sons diferentes que o cérebro da mulher interpretava como palavras com significados, cujo conteúdo agradava-a muito.
Em breve, haveria o contato físico e os nervos táteis enviariam correntes elétricas ao cérebro, que por sua vez liberaria endorfina na corrente sanguínea e dar-lhe a sensação de prazer.
Não faltaria muito, então, para seu corpo produzir altas quantidades de neurotrofina.
Euforia, suor nas mãos, frio no estômago, aceleração cardíaca, bochechas rosadas, prazer, saudades,
dependência, etc.
Depois, passado um ou dois anos, os níveis de neurotrofina diminuiriam e se dirá que a paixão acabou.
Com sorte, a neurotrofina dará lugar à oxitocina e se dirá que o que ela sente é amor.
Apesar de pensar em tudo isso enquanto conversava com o homem, de lembrar de todas suas desilusões, de passar noites comendo chocolates enquanto falava "homem não presta" para uma amiga no telefone e de afirmar ser uma mulher independente, ela cedia.
Ela cedia, pois sabia que embora todas suas amigas queimassem sutiãs como forma de protesto feminista, nenhuma delas queimariam a história de Cinderela.

quinta-feira, 4 de outubro de 2007

Viajando no ônibus - 2° divagação

Ônibus.
Um grande enlatado de gente.
Uma embalagem reutilizável.
Um transportador de carne.
Sim, de carne.
Que repugnância.
De fato, a princípio ninguém pega ônibus porque quer.
Ele é um mero meio, não um fim.
Já porta do ônibus me encanta com suas propriedades mágicas.
Ela é um filtro.
Nosso corpo entra, mas nossa mente não.
Deixamos nossa interface física com o mundo e vamos para qualquer outro lugar que não seja onde estamos.
A pequena mulher ao meu lado, por exemplo, dorme tranquilamente.
As trepidações não a incomodam e o barulho não perturba seu sono de mercúrio.
Ela dorme.
Seu corpo inerte está quase babando em meu ombro, mas ela não percebe.
Certamente, a moça está mergulhada em outra dimensão, na realidade paralela dos sonhos.
Já o jovem no banco ao lado fugiu para o mundo platônico.
Em suas mãos peludas, as páginas de A República o desligam do que se passa ao seu redor.
Tarde demais, o jovem foi transportado para séculos atrás.
Enquanto isso, a senhora adiposa perto da catraca mantém seu olhar inexpressivo fixo na janela.
Seus olhos caídos enxergam seu próprio reflexo lá fora, flutuando sobre as manchas rápidas que correm na direção contrária do veículo.
Mas, certamente, ela não está enxergando o que se passa lá fora.
É lá fora, flutuando, que ela realmente está.
Apesar de quase ninguém estar presente naquele local confinado, perto da senhora há um adolescente que presta atenção e se incomoda com o ambiente.
Obviamente, jamais percorrera este trajeto antes.
Quando se acostumar, porém, também vai deixar seu corpo ali e fugir para longe, até chegar a hora de recolher sua interface.
Mas até lá, sofrerá com sovaco suado na cara, seios nas costas, cotovelo na orelha, maleta no umbigo e tênis no joelho.
Sem nossas mentes ali, nossos corpos parecem iguais e se fundem naquele repugnante, úmido e fétido bolo quase fecal prestes a sair pelos fundos.
Sim, somos apenas um bolo de carne, engolido pelo monstro geométrico urbano.
Ele suga de nós o que precisa e sai defecando pela cidade inteira a parte não digerida.

Isso acontece sempre, com exceção daqueles que já passaram da validade.
Estes são regugitados pelo mesmo orifício por onde entraram.
Que repugnância.

quarta-feira, 3 de outubro de 2007

Viajando no ônibus - 1° divagação

Ônibus.
Uma palavra proparoxítona cuja função é designar uma espécie de conteiner-aquário motorizado.
Esse grande paralelepípedo oco carrega, em seu interior, um ecossistema em constante mutação e de uma biodiversidade incrível.
É engraçado como cada espécie, mesmo com metade do corpo em contato com o de outra, mantém uma distância imensurável desta, cada qual fechada em seu próprio nicho ecológico de preocupações e pensamentos.
Eu, por exemplo, estou divagando sobre as pessoas dentro do mesmo ônibus que eu, ombro a ombro com um homem de no mínimo 1,85m de altura, sem saber a cor da gravata que ele está usando.
Por isso, eu olho a gravata dele e descubro que é cinza com listras brancas diagonais descendentes da esquerda para a direita, muito bem atada, provavelmente com um nó francês.
Depois disso, me pergunto:
E daí?
E me dou conta que é bem mais interessante eu ficar quietinho divagando no meu, só meu, nicho ecológico.

terça-feira, 2 de outubro de 2007

...

Estarrecida, a multidão aglomerava-se em frente à grande escultura de metal.
Trágica e artística, a obra causava tamanho fascínio naqueles que a viam que os guardas no local montaram uma barreira para impedir que os expectadores tocassem o objeto.
No ápice de sua expressividade, o artista realizara sua última escultura em uma performance inigualável.
No auge do domínio de sua técnica, o mestre testara todos os limites de seu instrumento antes de chegar ao resultado final.
Com sua expressividade única, a escultura abstrata tocava a todos, sem exceção.
Era uma verdadeira obra prima, portadora de um
tamanho poder que, mesmo aqueles que estavam mais longe e ainda não a haviam visto, sabiam que havia algo demasiadamente humano escondido em algum lugar daquela forma irreconhecível.
Era como se o sangue ainda quente do próprio artista estivesse correndo lá dentro, buscando uma fresta para libertar-se da obra.
Vista de um determinado ângulo, era possível ver o próprio autor da obra e seu rosto sereno, com um leve sorriso de quem atingiu seu sonho.
Do outro lado, alguns afirmavam conseguir ver uma mulher com uma agonizante expressão de horror.
Fosse o que vissem, o fato é que o metal retorcido emocionava todos aqueles que o viam.
Lágrimas, espanto, curiosidade, indignação, fascínio e horror.
Entre tantos sentimentos em pessoas tão diferentes, o artista conseguiu tocar a verdadeira essência humana.
Sem exceção, todos queriam ver por si mesmos o metal disforme, mesmo sabendo das fortes emoções que tal visão poderia lhes causar, pois no fundo sabiam que todos aqueles que viram a obra sentiam, silenciosamente, alívio e prazer por não estarem no lugar da mulher morta, presa no carro jogado para fora da estrada pelo grandioso artista
.