domingo, 26 de agosto de 2007

Deuses e vermes

Seja você quem for, saiba que esta é a última página de minha vida.

Há oito dias, perdi-me nesta densa floresta.
Há três, a pouca comida que carregava acabou de ser digerida, meu cantil secou e não existe nenhuma fonte de água potável nas proximidades.
Sozinho, com inúteis equipamentos quebrados de orientação, minha esperança morreu antes de mim.

Já não tenho forças para nada, a não ser concluir meu último relato.
Por favor, entregue este diário de viagens para minha sobrinha.
Todas as informações que você precisa para encontrá-la estão contidas neste diário.
Este é o último desejo de um antropólogo que fracassou em

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Um milagre aconteceu.
Lembro-me apenas de ter desmaiado enquanto escrevia.
Não sei ao certo o que houve, mas, quando acordei, percebi que estava confortavelmente deitado sobre uma macia superfície.
Ao abrir os olhos, estava não mais na mata, mas em um quarto de pedra com pessoas estranhas.
Não entendo a língua deste misterioso povo, mas, pelo que entendi, uma dessas pessoas me encontrou desacordado na floresta e me carregou até aqui, onde fui devidamente tratado.
A princípio, achei que estava morto ou tendo alucinações, mas agora que estou bem e saí do quarto, percebo que o que enxergo é real.
O que eu vejo é uma cidade monolítica, lar de pessoas humildes e hospitaleiras com traços indígenas, olhos e cabelos negros e pele morena, a quem devo minha vida e a quem pretendo dedicar meus estudos de agora em diante.


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Estou aprendendo a língua, os costumes e a cultura deste intrigante povo que a sorte me concedeu o privilégio de conhecer.
Não conheci idioma nenhum que se compare em facilidade de aprendizado, pois não existem muitas regras gramaticais e sua escrita baseia-se em desenhos figurativos que, apesar de seguirem algumas simples regras, cada pessoa é livre para desenhar a seu modo.
Quanto à cultura, pelo pouco que pude notar, eles dão um imenso valor à natureza e a todo tipo de conhecimento, desde o campo artístico e emocional ao campo matemático e racional. Sua arquitetura, que se ergue em imensas torres de pedra interligadas por pontes suspensas, certamente requer um preciso conhecimento de engenharia e física.
Seu conhecimento na área de astronomia e medicina também é notável.
Poderia me estender nestes assuntos, mas deixarei para mais tarde, quando tiver estudos mais detalhados.
Por enquanto, estou apenas me esforçando para conseguir me comunicar com eles.


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Curioso.
É assim que me chamam aqui e não sem motivo, afinal, desde o dia em que aprendi a sua língua, não me cansei de interrogar todos sobre tudo.
Curioso.
Em todos estes anos de estudos, jamais conheci um povo como este.
Quanto mais aprendo sobre eles, mais aprendo, na verdade, sobre mim mesmo e meu mundo.
Quanto mais sei sobre eles, mais intrigantes eles se tornam para mim porque, sem sombra de dúvida, eles são únicos.
A primeira prova disto é que apenas em utopias, fantasias de escritores e comunidades que sucumbiram com o tempo temos uma sociedade sem sistema de classes.
Já esta, sobrevive há mais de dois milênios em igualdade social.
Aqui, todos têm acesso a tudo o que esta cidade providencia e a principal razão disto é que não existe idéia de posse.
Tudo é compartilhado porque tudo é de todos e todos são iguais, homens, mulheres, crianças e velhos. Até mesmo eu sou tratado de maneira igual. Minha pele branca, minhas roupas, meus objetos, minha chegada aqui, nada parece ter afetado a vida dessas pessoas.
Já descobri tribos indígenas que me tratavam como um deus, visitei índios hostis, mas jamais conheci nenhuma que me tratasse como um deles.
Para eles, eu sou apenas mais um cidadão, mas que ainda precisa aprender muita coisa.
Tive de aprender, por exemplo, que nesta sociedade não sou uma série de números e não preciso de pedaços de papel para comprovar minha existência, que não posso prejudicar ninguém em meu benefício, que devo respeitar a natureza e que conceitos, idéias e ideais não dividem pessoas em espécies diferentes.
De fato, já aprendi muitas lições, mas ainda tenho muito a aprender.
Em breve, explicar-me-ão a sua religião.


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Hoje de manhã, um garoto de mais ou menos dezesseis ou dezessete anos morreu e eu participei da cerimônia fúnebre.
Posso dizer que aprendi muitas coisas com eles, mas acho que jamais aprenderei a lidar com a morte do modo como eles lidam.
Acho que este é o aspecto mais estranho para qualquer pessoa do mundo nesta sociedade.
Para eles, tudo é um ciclo. Se os rios parassem, a vida acabaria. Se uma árvore não parasse de crescer, ela esgotaria a terra. Se o sol não nascesse, o frio da noite congelaria o planeta e, se não morresse, o calor queimaria tudo que existe.
A naturalidade com que eles encaram a morte é tanta que quando um indivíduo falece, ele não é enterrado nem cremado. O corpo é posto sobre uma grande pedra a cerca de meia hora de caminhada da cidade e aí é deixado para apodrecer e ser comido pelos seres detritívoros.
Comparando com outras culturas, este ato seria como o das muitas sociedades que realizavam sacrifícios animais e humanos para oferecer aos deuses.
Este povo, porém, não realiza sacrifícios, não mata, apenas espera morrer para oferecer a carne para os deuses de sua incomum religião que não sei, na verdade, se posso de fato chamar de religião.
A começar pela transcendentalidade, a vida após a morte.
Para eles, existe vida após a morte, mas de uma maneira mais cética. Nossos corpos serão deteriorados após a morte, absorvidos por outros organismos e estes, por sua vez, também sofrerão o mesmo processo até que em algum momento cada partícula de nosso corpo servirá mais uma vez à vida. É de se concluir, assim, que tudo é feito da mesma matéria, e é por isso que eles demonstram um enorme respeito pela natureza e tratam todos de maneira igual.
Outro aspecto interessante nesta religião é que não existe o ideal de um ou mais seres que criaram o mundo, pois, para eles, a realidade sempre existiu e, se não existiu, como é impossível voltar no tempo, não há porquê buscar respostas que não existem.
Não há nenhum ser superior a quem se deve cultuar e dar oferendas.
Impressionantemente, os “deuses” são os vermes.
Este fato não é completamente isento de sentido, pelo contrário, uma vez que conheço sua religião, sei que são eles quem permitem completar o ciclo da vida.


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Um diário de viagens como este deveria servir para anotar fatos e descobertas para que pudessem ser relatados posteriormente.
Não há, portanto, motivos para eu continuar a escrever, pois não voltarei para casa.
Após a morte de meus pais, jamais tive um lar verdadeiro, pelo menos até o destino me trazer para cá.
Este povo me salvou, me adotou como um deles e deu um novo sentido para minha vida.
Não quero voltar. Se eu voltasse, como retribuição, o mínimo que eu poderia fazer seria voltar e permanecer calado por toda minha existência.
Afinal, seria um crime expor uma civilização inocente como esta às garras da qual eu vim e julgá-la aos olhos dos cegos com que uma vez convivi.

Um comentário:

KK disse...

Interessante, Kiyo. Começando a criar teses sociais?
Eu estava com uma idéia parecida dia desses, mas que não foi adiante (por enquanto).
Era sobre uma sociedade perfeita, mas de pessoas infelizes. Que eu pretendo contrapor com uma outra, imperfeita, mas completa.

Ando meio sumido, inclusive nos comentários. É que eu comecei a trabalhar, então ando sem tempo...
Foi mal.

Abraços!!!!