quarta-feira, 12 de março de 2008

A Morte e a Memória

Em um fortuito encontro planejado pelo acaso, ele reencontrou uma antiga paixão, esquecida em meio a um álbum de fotografias empoeirado.
Desde então, aquela pequena brasa moribunda que havia permanecido em imbernação por longos anos sob densas camadas de cinzas reacendeu e queimava cada vez mais forte.
Sem conseguir pensar em outra coisa, resolveu contatá-la pelo telefone, mas ela já não mais residia naquele endereço que lhe trazia tantas lembranças.
Começou, então, a buscar notícias dela por meio de terceiros.

Após alguns dias de fracassadas tentativas, finalmente soube, por meio de uma velha amiga, que há algum tempo, sua antiga nova obsessão sofrera um acidente automobilístico que a deixou entre a vida e a morte.
Os médicos conseguiram salvar completamente seu corpo, mas seu cérebro sofrera danos irreversíveis e sua memória, de longo e de curto prazo, estava comprometida a tal ponto que ela teve de ser transferida para receber cuidados especiais em um asilo.
O choque que ele sentiu ao ouvir a trágica notícia tirou dele qualquer palavra que ele havia em mente.
Levantou-se, acenou com a cabeça para sua amiga e voltou para casa em silêncio.
Algo dentro dele havia mudado desde que soube da notícia.
Ele sabia.
Ele sentia.
Só não conseguia dizer o quê.
Passou o dia inteiro na poltrona, quieto e imóvel.

No dia seguinte, quando acordou, viu a foto que retirara do álbum e deixara sobre a mesa de cabeceira.
Esta imagem o fez fechar os olhos para a notícia do dia anterior e motivá-lo a ir visitá-la.

Logo que chegou, ele a reconheceu.
É, era ela mesma.
E continuava linda e jovial.
Sentada no jardim com um olhar sereno direcionado para as nuvens bailando no céu, nem percebeu aquele estranho se aproximar.
- Bonito dia, não? - disse ele, um pouco sem jeito.
As primeiras palavras que lhe surgiram foram "Lembra-se de mim?", mas as engoliu.
Ele não queria ouvir a resposta que sabia que ouviria.
Parte dele ainda negava, ainda queria acreditar que havia uma parte dela que o guardava carinhosamente na memória.
- É... - disse ela com um ar vago, analisando o recém chegado - acho que sim...
Sem saber direito o que dizer em seguida, os dois permaneceram em silêncio até que ele, um pouco incomodado, começou a falar do tempo.
Novamente, o silêncio sobreveio após algumas palavras, e assim se seguiu com outros assuntos banais.
Ainda relutante em aceitar o que já sabia, começou a fazer diversas perguntas, quase todas relacionadas a algum momento do passado que ambos compartilharam.
A resposta que ouvia era sempre negativa.
Em um último esforço para tentar vencer o combate impossível, juntou as migalhas de esperança que lhe sobravam.
Com os olhos úmidos e um pouco gaguejante, ele perguntou hesitante:
- Qual... me me desculpe perguntar isso, mas q-qual é a última coisa de que se lembra?
E ela calmamente lhe contou o que fizera naquela manhã, a pequena conversa que tivera com um médico, as instruções que dele recebera...
- ... e sinto uma estranha sensação de que esqueci alguma coisa, sabe? Só não consigo lembrar o quê. Daí eu estava caminhando aqui nesse jardim tentando lembrar quando olhei para cima, vi as nuvens e esqueci que tinha esquecido, haha, não é engraçado? - disse ela, sorridente - E então o senhor apareceu. Me disseram que amanhã eu já não vou mais lembrar do seu nome, mas como você se chama?

Ele caiu em prantos.
Finalmente, compreendeu que sua amada havia falecido naquele acidente.
Aquela mulher de carne e osso em sua frente era um fantasma intangível que o assombrava, que invocava nele as memórias de quem ele amou.
Que invocava nele as memórias que ele ainda ama e sempre amará.
Entendeu que se por ventura jamais tivesse recebebido tal notícia, ela ainda, ao menos para ele, estaria viva, com o coração palpitante, perdida em algum lugar do mundo, fazendo com que a morte existisse em diversos momentos, sendo mais uma série de múltiplos eventos ocorridos quando a informação é recebida em diversos pontos do que um acontecimento único.
E em sua morte, ela agora viva em paz.
Vivia em cada dia uma vida inteira.
Vivia cada dia como se fosse o último.
E em sua tristeza, ele agora aprendia a aceitar.
Compreendeu que era isso que ela era (ou foi).
Compreendeu que era isso que ele amava.
Memórias.







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