quarta-feira, 17 de junho de 2009

Cobertura da greve não tem fôlego analítico


Por Tatiane Klein em 16/6/2009
Colaboraram Lucas Rodrigues de Campos e Guilherme Balza Corrêa Netto, estudantes de Jornalismo da ECA-USP, e Bruno Mandelli e Daniela Alarcon, jornalistas formados pela ECA


"Invasão" e "confronto" estão entre as palavras centrais. O tipo de cobertura reservado à repressão dos movimentos sociais é aquele que estamos acostumados a ver: manifestantes baderneiros, pautas mostradas de forma desconexa, apoio à ação policial. Com a exceção de fotografias que desmontam a imagem de delinquência construída pelos textos – como as que estão nas primeiras páginas da Folha de S.Paulo (26/5) e do Estado de S.Paulo (10/6) –, no geral, a cobertura é manchada pelo preconceito.
Conforme observou no domingo (14/6) o ombudsman Carlos Eduardo Lins da Silva, a Folha (e o Estadão também) não notou, ou preferiu não notar, o que subjaz ao que vem sendo denominado "crise na USP". Os jornais a tacham como algo "político" e "radicalizado", e que, por sê-lo, não merece crédito ou uma leitura pausada. As reportagens caem com facilidade nesse alçapão, sem prestar atenção ao fato de que quase tudo o que se noticia sobre a USP – desde o começo do ano – tem estritamente a ver com a mobilização atual.
Para esses jornalistas, a greve dos funcionários da USP surgiu como que do nada, teve a "adesão" de professores e estudantes e, na última semana, se "radicalizou" de forma inexplicável, demandando violenta ação policial. Essa leitura estanque dos fatos faz só aprofundar a impressão de falta de consequência política entre os movimentos organizados da USP. Ninguém atentou, entretanto, para o fato de que o único confronto existente nessa conjuntura é a disputa entre projetos distintos para a universidade pública: um, dos manifestantes, que tem como foco a manutenção do caráter público e crítico da universidade, e outro, que se apega à lógica de entidades como o "mercado".
Ávidos por descobrir o grau de adesão à greve em número de unidades paradas, os jornalistas, de maneira geral, esquecem de prestar atenção às falas de estudantes, professores e funcionários nas assembléias que detalham as reivindicações. Os textos não juntam "lé com cré" e não se dispõem a tentar analisar o fenômeno fora da regra geral em que os fatos aparecem, autóctones, às vistas do leitor.

Desrespeito profundo

Sob o título "Curso para professor virou um alvo", matéria publicada no domingo (14) pelo Estadão é a única que se propõe a analisar uma das pautas de forma mais atenta. Ainda assim, o faz sem consultar sequer uma fonte contrária à implantação do Ensino à Distância, como tem sido proposto para as universidades estaduais. Na Faculdade de Educação, na Associação dos Docentes e no movimento estudantil há quem discuta cientificamente a questão e essas pessoas simplesmente não foram procuradas. Por falta de informação, a contrariedade diante da Univesp (Universidade Virtual do Estado de São Paulo) vem sendo mostrada como uma pauta ingênua e elitista, contrária à democratização do ensino superior.
Com o título "Dos 16% para o `fora Suely´", matéria também dada no Estadão (14/6) ironiza as pautas com base em um pressuposto falso: o de que, após o início da greve de professores e de estudantes, as reivindicações tenham sido alteradas ao sabor da desordem do movimento. O jornalista esqueceu de consultar a pauta unificada de reivindicações do Fórum das Seis, que congrega as entidades representativas das três universidades públicas estaduais. Ali, a pauta salarial, a readmissão do líder sindical Claudionor Brandão, a contrariedade com a Univesp nos moldes como está sendo proposta, entre outras pautas, já estavam presentes. A adição do "Fora Suely!", conforme testemunham os movimentos, deve-se à presença e ação da PM no campus.
Destaque para a pauta "política de convivência estudantil", que parece ter sido inventada pelo repórter, mas faz referência às políticas de permanência estudantil. No mais, o Estadão não se preocupou em verificar a quantas andam as políticas de permanência estudantil na universidade; de que forma a USP foi expandida (para a Zona Leste de São Paulo, por exemplo) sem ampliação de verbas; como o estatuto da USP tem sido reformado paulatinamente, sem consulta à comunidade. A Associação de Pós-Graduandos (APG), por exemplo, está impetrando um mandado de segurança contra a reitoria da USP por ilegalidades cometidas em votações do Conselho Universitário: nenhuma linha publicada sobre isso.
As reportagens também pecam por não terem consultado documento divulgado pela Associação dos Docentes sobre as perdas salariais dos professores e funcionários das universidades estaduais em comparação com a evolução da arrecadação do ICMS. De 1989 até 2009, as perdas salariais acumularam 42%. O reajuste salarial ganha mais sentido se observada essa queda em relação às arrecadações recordes do ICMS no último ano.
Se parte da comunidade uspiana hoje se insurge contra o projeto de universidade que a gestão da reitora Suely Vilela representa, isso é porque esta administração esteve marcada pelo profundo desrespeito à gestão democrática da instituição. Quando fala em democracia, a imprensa a resume ao direito de ir e vir, evitando expor a greve, os piquetes e as manifestações também como instrumentos democráticos.

O fetiche do "outro lado"

A Folha de S.Paulo, em especial, tem passado sensação de equilíbrio na cobertura mais recente da greve. No entanto, o fetiche de mostrar o "outro lado" como uma forma de supostamente produzir equilíbrio não livra a cobertura do jornal de textos bastante editorializados.
Um elemento revelador dessa orientação é a cronologia "Crise na USP já se arrasta há mais de um mês" (12/6). O texto foge da objetividade factual ao deixar de mencionar acontecimentos importantes para essa greve, como o fato de as negociações da campanha salarial entre o Cruesp (Conselho de Reitores) e o Fórum das Seis terem sido interrompidas unilateralmente pelo primeiro, no dia 25/5. Isso é o que contribuiu para acirrar os ânimos entre as categorias, e não a ocupação de parte da reitoria por um grupo de manifestantes. Tal procedimento desmonta a aura de objetividade da cobertura.
As críticas à ação policial aparentam ganhar força por conta dos ferimentos causados pela PM a um dos funcionários de Folha que trabalhavam na cobertura; e do fato de a reitora Suely ter negado, sistematicamente, entrevistas ao jornal.

Organização sindical como problema

Por que existem piquetes na USP? Esta pergunta não passou sequer perto das redações. Ora: se em qualquer indústria o direito de organização sindical e o direito constitucional à greve deve ser assegurado, e a demissão de grevistas em represália, condenada, também na universidade isso tem de acontecer. Mas as reportagens simplesmente não dão conta de quais tipos de ilegalidade a administração da USP comete contra seus grevistas: se há relatos de assédio moral, por exemplo, o leitor não sabe, nem viu.
A matéria "Líder sindical na USP já fez 12 greves e prega revolta armada", publicada pela Folha (13/6), também dá conta do viés que costura as posições do jornal sobre o sindicalismo. O destaque da manchete e da abertura da matéria para a filiação do líder sindical Claudionor Brandão a uma agremiação política que acredita na revolução armada é o signo do discurso que, subjacente ao texto, desqualifica o movimento. O texto atrela o movimento à violência da "revolta armada" e constrói a esdrúxula certeza de que uma vanguarda do movimento recorreria a armas para expulsar a PM da USP.Além disso, a reportagem parece esquecer que no Brasil, pelo menos desde 1988, há liberdade de organização política. Por certo não são expostos da mesma forma os sujeitos políticos que apoiaram o regime militar no passado.

Atitudes amenas

Ao narrar a ação repressiva da polícia na universidade, os jornais têm se valido das versões de manifestantes, reitoria e policiais, sem relatar o que muitos repórteres viram efetivamente na terça-feira (9/6). Exemplo é o destaque dado para o uso de bombas de suposto efeito "moral". O leitor que nunca esteve perto de uma das granadas de borracha usadas pela PM, não saberá que elas realmente colocam em risco a integridade física dos atingidos. A explosão de uma bomba de efeito "moral" pode causar queimaduras graves, mutilar dedos das mãos, rasgar e penetrar a carne, bem como cegar.
Na USP, a indignação contra o que aconteceu naquela terça-feira é grande e os jornais não estão nem perto de mostrar esse impacto. Dos repórteres que viram parte da comunidade uspiana ser acuada e violentada no interior de uma ambiente que se pretende autônomo, a maioria calou.


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