segunda-feira, 23 de março de 2009

Bostejando sobre a FAU


O prédio da FAU, Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, do campus USP Cidade Universitária, é um ícone da arquitetura e do espírito modernos. 
Para se ter uma idéia da importância deste marco, o projeto do famoso arquiteto modernista João Batista Vilanova Artigas foi tombado em 1982 e ganhador do prêmio Jean Tshumi da União Internacional dos Arquitetos em 1985.

Quem vê a FAU de longe, pode achar que é só mais um bloco de concreto e aço no meio da USP, mas quem conhece a FAU, sabe que existe um discurso e uma poética muito além daquilo que é aparente para um olhar distraído e distante.
Para começar, a FAU não tem portas. Não existe uma delimitação do que é dentro e do que é fora; o espaço interno e externo são integrados, um é continuação do outro.
Quanto à sua configuração interna, a melhor definição é do próprio autor do projeto: "A FAU é um espaço flúido, integrado, somático. A pessoa não sabe se está no primeiro andar, no segundo ou no terceiro."
A respeito das cores, as paredes cinzas de concreto aparente podem desagradar o olhar não acostumado, mas permitem aos alunos configurarem e personalizarem seu próprio espaço, não impondo padrões, cores ou texturas a ninguém.
Também pode desagradar os desacostumados a distância entre salas, departamentos, cantina, biblioteca, xerox e laboratórios, mas esta distância permite que a pessoa caminhe pelo prédio admirando suas formas e sua poética inerente de sua natureza moderna, tornando o meio, a passagem, um ato de deleite cotidiano.

Se sabendo disto você acha que já conhece a FAU, saiba que sua poética de integração vai muito além.
Quem estuda ou mesmo vive na FAU, como alguns alunos, e vivencia todos os dias a arquitetura de Artigas suficientemente a ponto de perceber suas pequenas nuances, percebe que a fluidez e a integração somática desejada pelo arquiteto reside nos detalhes.
A fusão entre interno e externo é tamanha que o interno enaltece as qualidades do ambiente externo, trazendo uma experiência sinestésica ao indivíduo fauano.

Em uma noite frio de inverno, o prédio não só mantém a temperatura externa, como tem a incrível capacidade de diminuí-la, potencializando a sensação de baixa temperatura às pessoas que ali se encontram. Ao olhar para cima, é possível enxergar estalactites de calcário provenientes de infiltrações planejadas por Artigas, trazendo uma mistura de sensações como a passagem do tempo e a de estar dentro de uma caverna de gelo.
O mesmo ocorre num dia quente de verão. O calor interno sublinha aos indivíduos dentro da FAU que a temperatura daquele dia é alta, para que eles não se sintam deslocados de seu entorno natural.
Esta forte ligação com o clima é ainda mais bela em dias de chuva, quando algumas gotas d'água entram nas salas de aula e nos estúdios pelas frestas do teto estrategicamente planejado para que o ente da experiência universitária sinta-se tocado pela natureza, mesmo estando no interior de um fruto do avanço tecnológico do sonho moderno de progresso. Não obstante, o material do qual é feito o telhado também aumenta o nível de decibéis da precipitação pluviométrica, permitindo ao indivíduo ouvir claramente cada pingo d'água, tão claramente que até mesmo o professor, que percebe sua pequenice diante das forças da natureza, pára seu discurso pedante, intimidado pela voz que cai das nuvens.
Como se não bastasse, isto em especial para os alunos de design, que estudam no período noturno, em sextas-feiras de happy hour, das salas de aula no último andar, é possível ouvir as pessoas que estão lá embaixo conversando alegremente,as músicas que estão dançando, os batuques de seus tambores e até mesmo inalar o odor de drogas ilícitas que pairam no ar, fazendo com que eles, mesmo durante uma aula, sintam-se integrados com os alunos do curso de arquitetura e participem da festa sem estarem lá.
É a arquitetura moderna proporcionando a integração completa entre indivíduos, quebrando limites de paredes e distâncias.
Esta supressão de distâncias chega a ser tão forte que recentemente, num projeto de paisagismo implantado pela prefeitura do campus, a FAU refez seus jardins e espalhou fertilizante pelos seus canteiros no entorno do prédio. O resultado é minimamente bucólico. A baixa ou quase nula circulação de ar da construção faz com que o natural perfume dos dejetos animais se acumule dentro da faculdade, remetendo a uma vida pastoral cercada pela espontaneidade digestiva dos bovinos, caprinos e equinos.

É quase como se aquele monolito cinzento possuísse propriedade mágicas.
Sem julgar valores, ele enaltece as qualidades que entram, não só climáticas e ambientais, mas até mesmo pessoais.
Se um aluno entra bêbado, sai um alcóolatra; se um bixo entra um homossexual enrustido, sai de lá um grande gay alegre e assumido, se uma pessoa entra perdida, sem saber ao certo que caminhos seguir, sai ainda mais perdido do que entrou, isso para citar apenas alguns exemplos pontuais.
Ninguém entra lá como um arquiteto profissional, e a maioria que se forma, respeitando os princípios da FAU, são muito bem sucedidos nas mais variadas profissões, desde que não sejam arquitetura, como nosso grande Chico Buarque de Hollanda, por exemplo.

É como se a FAU fosse o oposto diametral do famoso "nada nadificador" de Heidegger.
A FAU é o tudo tudificador que potencializa as potencialidades socio-ambientais que permeiam seu interior e seu entorno.
Ela é a materialização da liberdade, do flúido, da integração somática entre pessoas de uma sociedade e entre a civilização e a natureza.



terça-feira, 17 de março de 2009

Babel


Uma outra lenda que não existe conta que a construção da Torre de Babel começou em uma data incerta, mas sabe-se que ela se deu numa época em que as pessoas se compreendiam e compartilhavam os mesmos desejos. Ao contrário, porém, do que conta a lenda que existe, não é uma edificação para se chegar aos céus e nem ao menos uma torre ela é.

No início, quando os arquitetos pensavam no projeto da Torre de Babel, riscavam rascunhos de altura progressiva em direção ao paraíso, com belas escadas em espirais que se enrolavam numa série de curvas que, ao longe, pareciam uma única reta que apontava para a morada dos deuses.

Uma torre, contudo, era falível e frágil quanto maior era sua altura, e os projetistas, buscando uma construção indestrutível até mesmo para as forças divinas, abandonaram o modelo vertical e chegaram a um modelo arquitetônico perfeito.

A idéia era expandir a construção não para cima apenas, mas para todas as direções possíveis, sem limites.

As escadas em espiral, por sua vez, deram lugar a corredores sinuosos e retos, com paredes de espelho ou de vidro, de maneira que ora deixavam visível o que se escondia atrás do sólido, ora replicavam o transeunte infinitamente, e com bifurcações igualmente sem fim.

Ao cabo de algum tempo, o povo observava sem compreender como aquele labirinto sem saída, que logo cobriria toda a superfície do mundo, poderia levar algum dia ao paraíso.

O que o povo não sabia, todavia, era que as premissas de Babel iam muito além do visível e do tangível.

O babélico projeto do labirinto infinito não era chegar a algum lugar. O intuito era justamente se perder nas bifurcações entre curvas e retas para se encontrar o tempo inteiro em reflexos e reflexões dos corredores espelhados e transparentes, pois o paraíso, descobriram os arquitetos, não era um lugar acima e distante de nossas cabeças. O paraíso era um não lugar que se escondia em todos os lugares de Babel, como um Aleph invertido, uma circunferência cujo centro estava em todos os lugares e que se expandia infinitamente para todos e em todos os sentidos, como o universo curvo de Einstein.



segunda-feira, 16 de março de 2009

Ready Made Involuntário


Um soldado das forças armadas brasileiras caminha pelas ruas de São Paulo vestindo seu uniforme num dia quente de verão.
Em meio à multidão, ele se destaca não pelo comprimento de suas calças nem de suas mangas brigando com o calor, mas pelo padrão de tons verdes e marrons que tenta imitar as cores de uma floresta tropical.
O que deveria ser um não signo, o que deveria servir de camuflagem para se fundir ao ambiente, torna-se seu oposto. 
O tecido das cores da mata gritam em meio às cores urbanas, chamando a atenção de todos ao redor.


- Eu diria que é eficaz, já que serve de camuflagem onde se deve estar o menos visível possível e chama a atenção de todos quando não é preciso esconder-se, mostrando o orgulho do exército de nosso país.

- Acho que essa duplicidade é sem querer, mas não importa, eu diria que é irônico. Quase um ready made involuntário cujo intuito é criticar a si próprio e o sistema no qual está inserido.

- Vendo por este lado... é, realmente, e olha só a cara de penico do Duchamp dele.

- Então faça continência ao soldado R. Mutt.

quinta-feira, 12 de março de 2009

Pandora


Uma lenda que não existe conta que Pandora, do grego Πανδώρα, ou "a que possui todos os dons" ou "a que é o dom de todos os deuses", abriu uma caixa e libertou todas as palavras do mundo.

As palavras, como um quase infinito exército de formigas vorazes, espalharam-se neste mundaréu, entrando em todas as fendas no chão, nas paredes, nos ouvidos, nas mentes, nos olhos, transformando a paisagem por onde passavam para logo em seguida sair das bocas, das mãos, dos olhos, das penas, do giz e do carvão em busca de algo que estava além delas próprias.

Algumas diluiram-se e ficam inertes, como microorganismos invisíveis misturados e flutuantes no ar, esperando que alguém as inalasse para poderem infectar seu hospedeiro e se multiplicarem suficientemente para contaminar outros seres.

Outras fundiram-se com objetos e massas encefálicas, num processo simbiótico tão presente e profundo que passam desapercebidas.

Há, porém, ainda, algumas raras palavras que voam livres em algum jardim escondido, palavras que o homem ainda não descobriu e permanecem selvagens, puras, invisíveis, impronunciáveis, inescrevíveis; palavras cujos sentidos se camuflam entrelinhas.
.
.

terça-feira, 10 de março de 2009

Elogio da Loucura


Praça da Sé, São Paulo, fim da tarde de uma data tão importante como qualquer outra.

Um mendigo anda em círculos com um livro de Heiddeger debaixo do braço enquanto monologa sobre Os Prolegomenos a Toda Metafísica Futura.
De vez em quando, ele pára, se joga no chão e anota alguma coisa em um caderninho, para logo em seguida se levantar novamente e retomar seu discurso de onde parou.
Com os olhos fixos no chão, ele interrompe sua análise sobre a obra de Kant quando tromba com um policial militar.
Desesperado, ele abraça Heiddeger com força e corre em direção à rua, onde é atropelado por um ônibus.
Ali, agonizando no meio do passeio público, ele sorri.
Está morrendo, e quer aproveitar ao máximo esta sensação única.

"Não há ser mais humano que o louco."

Pronunciou estas últimas palavras e morreu na contramão atrapalhando o tráfego.



quinta-feira, 5 de março de 2009

Going Places Sitting Down


Caminhava lentamente, sob um espectro de cores que só o céu poderia ter.

No horizonte, sobre um circular espelho d'água, erguia-se aquele grande monolito retilíneo e vertical, que sugeria uma invisível reta que dividia ao meio o dia, entre o Sol e a Lua, e o infinito arco da miragem do limite da Terra.

Deveras, uma bela visão naquele dia morto em que as horas pareciam não passar e em que todos os relógios pareciam marcar uma eternidade rotativa.

De fato, marcavam, realmente, uma eternidade rotativa, mas naquele momento, pouco lhe importava.

A preguiça do tempo era insuportável, mas também era contagiante, e o fez se sentar para recepcionar, sob a sombra da grande reta, a escuridão estrelar que chegaria em breve.

Enquanto esperava, o vento soprava, varrendo as folhas caídas, desarrumando seus cabelos e acariciando a água que ilhava o monumento.

O ar se movia e, em sincronia, a água se deixava mover, fazendo bailar sobre ela os reflexos das nuvens e do monolito, cujas retas, tão imponentes no ar, tornavam-se graciosas curvas e ondas no líquido.

Neste exato momento, o vento soprou-lhe um pensamento: na visão de alguém submerso, a imagem vista seria o exato oposto, as retas do monolito, tão imponentes debaixo d'água, tornariam-se graciosas curvas e ondas no ar.

Separadas por uma camada ilusória, as visões eram uma só, sendo que o único fator que mudava era apenas o ambiente em que se encontrariam os observadores, cada um de um lado do espelho.

O vento, então, soprou mais forte, trazendo-lhe outro pensamento: e se os observadores se deparassem, vendo o outro na trêmula face reflexiva da água? Achariam que é um reflexo ou reconheceriam uma outra pessoa do outro lado do espelho?

Sem responder a si, ao menos com palavras claras e distintas, ele se levantou e continuou a caminhar lentamente, agora sob uma pálida luz que só a Lua poderia ter.


terça-feira, 3 de março de 2009